Não está em educação: o tempo dos jovens Nem-Nem na América do Sul

Enid Rocha Andrade da Silva

p. 25-28

Translation(s):
Ni au travail ni aux études : le temps des jeunes Ni‑Ni en Amérique du Sud

References

Bibliographical reference

Enid Rocha Andrade da Silva, « Não está em educação: o tempo dos jovens Nem-Nem na América do Sul », Revue Quart Monde, 254 | 2020/2, 25-28.

Electronic reference

Enid Rocha Andrade da Silva, « Não está em educação: o tempo dos jovens Nem-Nem na América do Sul », Revue Quart Monde [Online], 254 | 2020/2, Online since 01 June 2020, connection on 28 March 2024. URL : https://www.revue-quartmonde.org/10220

Os jovens sem emprego, educação e treinamento (NEET), são muitas vezes invisíveis nas publicações oficiais. Uma extensa pesquisa sobre este tema foi realizada em 2018 como parte do projeto Millennials na América Latina e no Caribe, cujos resultados são aqui apresentados pelo autor.

A juventude é uma etapa da vida marcada por várias mudanças. Nessa fase, espera-se que os jovens estejam se preparando para conquistar as condições, econômica, social e emocional para viverem de forma independente e para constituírem suas próprias famílias ou levarem suas vidas da maneira que escolherem. A transição da escola para o trabalho é apenas um dos marcadores desse período da vida. No imaginário social, a juventude seria, idealmente, uma fase intensa, marcada por um ritmo frenético em que os jovens estariam imersos em muitas atividades, com pouco tempo livre. Estariam gastando o tempo para se qualificar, estudar e adquirir experiência de trabalho por meio de estágio ou do primeiro emprego. Tudo isso somado se constituiria em um voucher para a conquista de um emprego de qualidade e para a garantia da tão sonhada independência.

No entanto, a vida não é assim tão previsível. Os eventos marcadores da juventude – escola, trabalho, independência financeira, saída da casa dos pais, casamento, filhos – não ocorrem de forma linear, são desorganizados e não são definitivos. Na vida real, os jovens transitam por idas e vindas de uma situação para outra. Podem se casar, ter filhos ou saírem da casa dos pais antes de concluírem a transição escola-trabalho. Voltam a morar com os pais após terem saído. Param de estudar para trabalhar, depois retomam os estudos. Optam por conciliar estudo, trabalho e vida familiar. Por um tempo podem preferir só estudar e não trabalhar. E, ainda, podem ficar um tempo sem trabalhar e sem estudar.

A invisibilidade da juventude inativa

Sob a ótica da conquista de sua independência, a situação mais temida é aquela em que o jovem fica sem trabalhar, sem estudar e sem se capacitar. O acesso a uma educação de qualidade e a experiências de trabalho significativas são fundamentais não só para o bem-estar do próprio indivíduo, mas também para o da sociedade como um todo. De acordo com a literatura econômica e social, por meio do estudo e do trabalho, o indivíduo desenvolve habilidades cognitivas e sócio-emocionais que são determinantes em suas trajetórias pessoais e profissionais. Maiores níveis de escolaridade e experiências laborais estão associadas a melhores níveis de empregabilidade, salários, saúde e menor probabilidade de se envolver em atividades de risco, como o crime.

O problema da inatividade juvenil (ou exclusão, ao mesmo tempo, da escola, de trabalho ou da capacitação) tem sido objeto de preocupação em muitos países. Os jovens na situação sem trabalhar, sem estudar e sem capacitar foram inicialmente identificados no Reino Unido e tornaram-se mais amplamente conhecidos nas publicações como “jovens NEET” ( “Not in Education, Employment or Training” - NEET). Esta designação “Não está em educação, emprego ou treinamento” (NEET) foi usada pela primeira vez no Reino Unido no final dos anos 90 em uma publicação governamental, Bridging the Gap Report: novas oportunidades para jovens de 16 a 18 anos que não estejam em educação, emprego ou treinamento ( Reino Unido, 1999).

Naquela época, o governo inglês descobriu cerca de 200.000 jovens que não estavam incluídos nas estatísticas de emprego e educação. Esse fato causou surpresa e preocupação para os gestores públicos, porque se tratava de uma população invisível para as políticas públicas. Por não estarem estudando ou trabalhando, não existiam dados ou informações estatísticas sobre eles. Depois disso, o conhecimento da palavra NEET se espalhou e definições similares foram adotadas em quase todos os países. Nos países de língua espanhola, o grupo é referido pela expressão "Ni-Ni" - ni estudian ni trabajan, a mesma expressão foi usado na França “Ni-Ni” - jeunes ni enploi, ni en études, ni en formation (Ni-Ni); e Portugal e Brasil são apelidados de "Nem-Nem - nem estudam, nem trabalham e nem se capacitam".

Para conhecer melhor as decisões que os jovens tomam em relação à estudar, trabalhar, combinar estudo e trabalho, ou não estudar nem trabalhar foi realizada em 2018 uma ampla Pesquisa no âmbito do Projeto Millennials na América Latina e no Caribe que incluiu a participação de mais de 15.000 jovens entre 15 e 24 anos em nove países (Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Haiti, México, Paraguai, Peru e Uruguai).1 E os dados que serão apresentados a seguir são resultados do referido estudo, que teve como preocupação central as atividades de trabalho e estudo dos jovens latinos americanos..

O que fazem os Jovens na America Latina e Caribe

De acordo com os resultados da pesquisa, 41% dos jovens latino-americanos se dedicam exclusivamente aos estudos; 21% não estudam e apenas trabalham; 17% conciliam trabalho e estudo; e 21% são os jovens que estão sem estudar, sem se capacitar e sem trabalhar. Esses últimos são os jovens conhecidos como NEET; “nem nem” ou “ni ni”. Existe grande heterogeneidade nessas situações entre os países pesquisados. Por exemplo: na passagem de países para a situação educacional e de execução dos trabalhos. Por exemplo, no Paraguai, 33% dos jovens só estudam; enquanto no Haiti os jovens nesta situação representam 68%.

A análise por gênero não mostra grandes diferenças entre himens e mulheres entre aqueles que só estudam, só trabalham ou que realizam as duas atividades ao mesmo tempo. No entanto, entre os jovens “nem nem”, aqueles que estão sem trabalhar, sem estudar e sem se capacitar, há uma expressiva diferença de gênero. Em todos os países, a proporção de jovens mulheres que não estão inseridas no sistema educacional nem no mercado de trabalho é mais que o dobro do que os jovens do sexo masculino. No Brasil e em El Salvador, quase a proporção de mulheres “nem nem“ é quase três vezes maior que a proporção de homens.

De fato, estudos anteriores, sobretudo no Brasil, já mostravam que os grupos de jovens considerados inativos eram formados, principalmente, por mulheres, jovens de baixa renda, negras e com baixa escolaridade, moradoras em áreas rurais e em domicílios com maior número de crianças. Entre as jovens mulheres “nem nem” predomina as casadas com filhos, enquanto entre os homens “nem nem” era mais comum serem solteiros com baixa, escolaridade e sem filhos. É assim que a responsabilidade pelas tarefas domésticas está entre os principais obstáculos enfrentados pelas mulheres jovens na acumulação de capital humano.

...especialmente mulheres jovens

É importante destacar que muitas particularidades das mulheres jovens são ignoradas porque as atividades domésticas não são levadas em conta na definição de trabalho. Por esta razão é comum chamar as mulheres de inativas por não estarem matriculadas na escola formal e não estarem engajadas em trabalho remunerado. Mas na verdade, o tempo dessas jovens mulheres são amplamente utilizados no trabalho doméstico, não remunerado tão prejudicial para a escolaridade quanto para a entrada no mercado de trabalho. E isso se dá porque frequentemente porque as jovens substituem os pais no cuidado dos filhos. Além disso, as tarefas domésticas também podem afetar a remuneração dessas jovens, uma vez que restringem o tempo e o esforço disponíveis para o trabalho formal e remunerado, afetando a produtividade e, consequentemente, seus salários.

As jovens com pouca escolaridade que não estavam estudando ou trabalhando no momento da que a Pesquisa foi realizada descreveram seu cotidiano entre a realização das tarefas domésticas e o cuidado das crianças ou outros menores da família. Parte desse grupo estava à procura de trabalho e algumas mencionaram que tinham feito tentativas de estudar em casa sozinhas. No entanto, acharam difícil cumprir esses objetivos por causa das responsabilidades no lar. Os custos de transporte também limitam as condições para a procura vagas no mercado de trabalho. As histórias sugerem que as suas rotinas diárias são atarefadas e desinteressantes, sem qualquer tempo livre.

Uma das jovens entrevistadas descreveu um dia de sua vida da seguinte forma: “Pela manhã, eu ajeito minha filha, espero dar a hora de levar ela para escola, ajudo minha mãe dentro de casa, quando aparece unha (para fazer) eu vou, faço. Levo ela para a escola à tarde. Durante a tarde, vou fazer meus deveres de casa, né? Lavar a roupa, arrumar a casa, […] Vou buscar ela, à noite, ela dorme cedo. Meu dia é isso.” (Jovem brasileira participante do Grupo Focal feminino de 19 a 21 anos).

Não só, as dificuldades relatadas por essas jovens na obtenção de emprego referem-se às exigências de experiência prévia por parte dos empregadores ou à falta das qualificações necessárias para competir por um lugar em um mercado cada vez mais exigente. Não por acaso, quando na entrevista foram convidadas a expressar o sentimento de serem jovens hoje no Brasil, algumas das palavras que emergiram foram: despreparada, desmotivada, desqualificada e excluída.

Por que os jovens estão sem trabalhar e sem estudar?

As principais atividades realizadas pelos jovens que se encontravam sem estudar e trabalhar no momento da pesquisa eram as tarefas domésticas. Na América Latina como um todo, 63% dos jovens “nem nem” entrevistados citaram que dedicavam seu tempo aos cuidados familiares, sejam cuidando de crianças pequenas, doentes ou idosos no domicílio. Proporção elevada (95%) declarou que gastavam seu tempo na realização de trabalhos domésticos. Além disso, cerca de 1/3 dos jovens “nem nem”entrevistados afirmou que também gastam seu tempo a procurando trabalho.

Em síntese, os jovens “nem nem”não são jovens improdutivos, que gastam seu tempo sem fazer nada. Pelo contrário, uma fração muito pequena dos “nem nem”, em média apenas 3% deles, encontram-se desencorajados ou desmotivados para trabalhar ou estudar. Na verdade, são jovens impedidos de realizar trabalho remunerado ou de frequentar escola. São, de foram geral, as pessoas responsáveis pelo trabal em todos os países, exceto no Haiti, onde atinge 12%. Em resumo, uma fração muito pequena dos NEETs, em média apenas 3% deles, não faz trabalhos domésticos ou se importa, não procura emprego ou tem uma deficiência que os impede de estudar ou trabalhar. As taxas são mais altas, no entanto, no Brasil e no Chile, com frações aparentemente jovens inativas flutuando em torno de 10%.

1 Millennials en América Latina y el Caribe: ¿trabajar o estudiar? / Rafael Novella, Andrea Repetto, Carolina Robino, Graciana Rucci, editores. Chile

1 Millennials en América Latina y el Caribe: ¿trabajar o estudiar? / Rafael Novella, Andrea Repetto, Carolina Robino, Graciana Rucci, editores. Chile, Santiago, 2018

Enid Rocha Andrade da Silva

Enid Rocha Andrade da Silva é responsável pelo planejamento e pesquisa na Diretoria de Estudos e Pesquisas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA - Instituto de Investi-gación Económica Aplicada). Uma fundação pública federal vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, IPEA fornece apoio técnico e institucional às ações governamentais - apoio que permite a formulação e reformulação de políticas e programas públicos para o desenvolvimento brasileiro. Está sediada em Brasília.

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